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Igreja que dialoga: caminhos, posturas e dificuldades

Confira a primeira parte da entrevista com Pedro Dulci, organizador de Igreja Sinfônica, e saiba mais sobre a importância de a igreja abrir-se para o diálogo até mesmo com aqueles que possuem posições discordantes

Dialogar com não cristãos ou com pessoas oriundas de outras áreas do conhecimento, como a ciência, é algo ruim em si? De que forma abrir-se para a troca de ideias e opiniões pode ser um instrumento para o fortalecimento da fé e uma contribuição para a formação de uma igreja mais forte e dinâmica? O que é apologética e como fazê-la corretamente?

Para obter as respostas a essas e outras perguntas, conversamos com Pedro Dulci, pastor, filósofo, teólogo, escritor e organizador de Igreja Sinfônica – Um chamado radical pela unidade dos cristãos. Na entrevista, o autor lança as bases para quem deseja realizar um diálogo profícuo, que enriquece a igreja e edifica os cristãos e esclarece pontos fundamentais acerca da importância da abertura para a troca de ideias mesmo com aqueles que possuem opiniões antagônicas à fé cristã. Um conteúdo curioso e esclarecedor. Confira a primeira parte!

Mundo Cristão: Por que é importante que a igreja se abra para o diálogo e permita-se trocar ideias e opiniões até mesmo com aqueles que possuem posições discordantes, seja em âmbito eclesiástico ou secular?

Pedro Dulci: No conjunto das doutrinas cristãs existe uma convicção retirada das Escrituras que sempre é lembrada em assuntos de salvação, mas raramente é usada para o diálogo eclesiástico e cultural: a graça comum. Por toda a Bíblia lemos que Deus, por amor a seu nome e para sua glória, concede à criação expressões da sua graça que são comuns a crentes e descrentes. Isso significa que momentos de verdade, de beleza e de bondade não estão confinados meramente ao âmbito sagrado, nem apenas disponíveis aos discípulos de Cristo.

Antes o contrário, todas as pessoas podem experimentá-los nas circunstâncias mais inesperadas. Isso é evidente desde Gênesis que narra os desenvolvimentos culturais dos seres humanos afastados de Deus (Gn 4.17-24) até os ensinos de Jesus, que deixou claro que: o sol nasce para justos e injustos, e a chuva cai sobre maus e bons (Mt 5.43-48). 

Além de ser um mecanismo divino de frear as consequências do pecado, a graça comum é um dos pilares fundamentais para o diálogo do cristão com diferentes tradições teológicas e grupos sociais não cristãos. Se realmente cremos que existe uma graça de Deus comum a todo e qualquer ser humano, isso significa que podemos aprender algo de bom, de belo e de verdadeiro sobre Deus fora da esfera religiosa.

Quando um grupo cristão se fecha para essa convicção, além de estar negando um ensinamento claro da Bíblia, ele está deliberadamente fechando os olhos para a ação de Deus através de inúmeros fenômenos e indivíduos que não necessariamente fazem parte de alguma igreja confessional ou que podem ser rotulados como gospel.

Em síntese,

é importante para a igreja abrir-se para o diálogo com aqueles com posições confessionais, ideológicas ou pessoais discordantes, porque ninguém consegue esgotar a verdade, a bondade e a beleza de Deus em suas formulações intelectuais pessoais.

Não existe sistema teológico perfeito, nem cosmovisão cristã tão completa que não possa ser enriquecida. Nós aprendemos com o diálogo – inclusive com aqueles que não têm a mesma fé que nós. A graça comum é o pressuposto e a condição para esse ponto de contato com o descrente. 

De que forma o diálogo acontece?

Acima de tudo, de maneira pessoal, relacional e presencial. Estamos imersos em uma cibercultura onde a distinção entre real e virtual não faz mais sentido. Quem faz essa distinção é porque não é um nativo da cibercultura, isto é, não nasceu já imerso nessa configuração de mundo.

Entretanto, mesmo com todos os seus benefícios (advindos da graça comum, inclusive), a tecnologia por trás das mídias sociais não é, de maneira nenhuma, a melhor mediação para um diálogo. Não é sem motivo que a ideia de “rosto” tornou-se tão fundamental para algumas reflexões éticas (em especial aquelas desencadeadas por Emmanuel Levinas): é absolutamente diferente um diálogo construído “olho no olho” do que aquelas discussões feitas atrás da tela de um computador.

A internet,

as redes e mídias têm sua função clara e estabelecida indiscutivelmente. Não se trata de nenhum primitivismo tecnológico. Todavia, acreditar que um diálogo maduro, atento e respeitoso pode ser construído apenas pela postagem de textos, edição de livros ou gravação de vídeos beira a ingenuidade.

Eu iria além e afirmaria que se trata de mais um traço anticristão de nossa cultura: nós adoramos um Deus que se fez carne! A encarnação, a presença histórica pontual é uma das marcas distintivas da fé cristã e, por isso, precisa orientar nossas posturas éticas, teológicas e intelectuais.

Os autores bíblicos,

mesmo conscientes da relevância que uma carta apostólica tinha, podendo ser lida e transportada pelas igrejas do primeiro século, várias vezes terminavam seus documentos dizendo: estamos ansiosos de estar com vocês. Essa “presença real” (de Cristo e dos cristãos) não é um tema a ser discutido apenas em nossas celebrações da Santa Ceia. Trata-se de como Deus escolheu se relacionar com os seres humanos, e o caminho (relacional) que ele gostaria que reproduzíssemos.

Frente a tudo isso, a forma como o diálogo deve acontecer é de maneira encarnada, e não o neo-gnosticismo cibernético em que vivemos. Nada substitui a conversa olho no olho, os encontros à mesa, a disposição de ir até o outro e escutar diretamente dele o que ele pensa e crê. Muitos conflitos seriam, no mínimo, suavizados se cada uma das partes tivesse a mesma disposição de Cristo de “estar entre nós”.

Essa não é uma proposta romântica de unidade, nem um ideal abstrato para palestras motivacionais. Nós do Movimento Mosaico, nos últimos anos temos experimentado renovação de alianças que foram rompidas através da simples metodologia da insistência pelas relações pessoais. 

Nada substitui a conversa olho no olho, os encontros à mesa, a disposição de ir até o outro e escutar diretamente dele o que ele pensa e crê.

O que o diálogo é?

Sem rigor de uma definição final, podemos dizer que: o diálogo é a interação entre duas ou mais partes (pessoas, grupos, tradições), alimentado pela convicção de que Deus, pela sua graça que é comum a todos os seres humanos, é poderoso e criativo o suficientemente para nos ensinar a partir dos contextos mais improváveis.

E o que o diálogo não é?

Qualquer proposta de interação entre duas ou mais partes em que um dos lados do diálogo monopoliza ou silencia as outras partes – por preconceito, arrogância ou incapacidade de reconhecer que Deus pode usar os que pensam diferente de nós para ampliar, refinar ou mesmo confirmar o que sabemos. 

Aqui, eu gostaria de fazer um acréscimo: tornou-se comum a acusação de que essa postura de incapacidade para o diálogo vem dos círculos “fundamentalistas” (na pior acepção da palavra). Isto é, àquele grupo que Rubem Alves gostava de chamar de “Protestantismo de Reta doutrina”, preocupado apenas com a ortodoxia doutrinária.

Eu não retiraria a parcela de indisposição dessa ala do protestantismo brasileiro. Entretanto, eu preciso dizer que existem muitos grupos que criticam os irmãos de “reta doutrina” em prol de uma postura mais progressista, mas são igualmente intolerantes e indispostos para o diálogo encarnado e respeitoso com os diferentes. Enfim, questão da unidade da igreja atinge a todos e são poucas iniciativas relacionais de unidade.

Muitos sentem dificuldade em estabelecer contato com quem não possui a mesma confissão de fé ou com quem trafega por outros campos, como a ciência. O que tais pessoas precisam ter em mente ao abrir-se para o diálogo e a troca de conhecimento, mesmo sendo antagônicos em algumas posturas?

Grande parte dessa dificuldade é fruto da incapacidade de se dispor a ouvir o outro e conhecê-lo por ele mesmo. É claro que essa indisposição é resultado de preguiça e preconceito – realmente é muito mais fácil e prático insistir no modelo de conflito  (que silencia a outra parte e se satisfaz em apenas falar sem precisar se dar o trabalho de ouvir).

Mais do que isso: a retórica do conflito é muito mais atraente! Quando usamos o “nós” e “eles” geramos um senso de unidade, caricaturamos um grupo rival, jogamos em descrédito várias obras e iniciativas contrárias a nossa (que agora nem precisam mais ser lidas, pois são primitivas, equivocadas e reducionistas).

Enfim, nada mais totalitário.

Veja o exemplo que foi citado: a ciência. O modelo de interação pelo conflito entre religião e ciência é o mais popular hoje em dia (Dawkins está rico pela venda de seus livros de autoajuda ateísta) porque a sociedade simplesmente não conhece a história. Ciência e religião estão em relação de complementariedade há, pelo menos, uns 500 anos – para falarmos apenas da modernidade.

Como membro da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²), eu costumo a ouvir e a ajudar vários cristãos (alunos de nosso curso online) a reconhecer como os exemplos de interação complementar e frutífera entre ciência e fé cristã é imensamente maior do que os exemplos de conflito. Entretanto, nos cursos universitários brasileiros em ciências naturais e tecnológicas são raríssimos os investimentos (e o interesse) em discussões desse âmbito – fazendo dominar a ideia absurda, do ponto de vista filosófico, de uma neutralidade científica.

O mesmo acontece nas nossas igrejas locais.

Os pastores não são preparados nos seminários para esse tipo de diálogo, os membros da comunidade não recebem ensino regular sobre o assunto e o resultado é o que conhecemos: na melhor das hipóteses os dois campos mantêm um conhecimento insignificante um do outro ou, na pior das hipóteses, o modelo de conflito é alimentado.

Em suma, a dificuldade de estabelecer contato com quem não possui a mesma confissão de fé não é um problema causado por um fator anterior (que precisa ser corrigido). Dificuldade de contato é o próprio desafio lançado: precisamos nos deslocar em direção ao outro em uma postura de real interesse em ouvi-lo, entendê-lo e aprender como Deus está trabalhando naquela dimensão da realidade.

Gostou do conteúdo?

Então, não deixe de ler a segunda parte da entrevista com Pedro Dulci. Nela, o estudioso fala sobre a boa apologética e aponta como a prática do diálogo pode ser um instrumento para o fortalecimento da fé. Imperdível!  

Acompanhe essa e outras novidades aqui no site MC e em nossas redes sociais.

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